domingo, 22 de abril de 2007

Os Trampos.


Na minha família, todos estudávamos sem precisar trabalhar até completar o primeiro grau. Foi quando saí do Maffei Vita para o Colombo em 82, que comecei a folhear o Estadão todos os domingos a procura de emprego. Naquela época o caderno de empregos do jornal era o dobro de toda a edição que atualmente sai aos domingos! A letra “A” de auxiliar era infinita. Mas eu ia direto pra letra ‘o” de office-boy. E não era muito fácil achar um anuncio que servisse. A maioria pedia pelo menos um ano de experiência. Bah! Como?! Se esse cargo era procurado justamente pelos que entravam no mundo do trabalho aos 14 anos?!! Dos quarenta (!) anúncios que costumavam sair, somente uns 5 não pediam ou não mencionavam experiência. Eu os recortava e saía toda segunda-feira de manhã pra “fazer ficha”, confiante, com meu diploma de datilografia da escola Itapemirim na pastinha. Não via a hora de ter o meu salário... quero dizer, metade do meu salário (a outra ficaria com a mãe).
Nesses saudosos anos a gente começava a projetar a vida profissional assim: começaria como office-boy (ou contínuo, mais chic), depois passaria para boy maior (aos 18), e finalmente, conseguiria a promoção para o cargo de auxiliar de escritório (o auge da carreira). Como auxiliar era possível alugar uma casa, constituir família, ter algum orgulho social. Se tivesse sorte, se especializava numa tarefa mais específica (auxiliar de cobrança, por exemplo).
Faculdade?! As privadas já eram caríssimas, as públicas já eram inacessíveis. O negócio era fazer um colegial técnico (opção em Humanas ou Exatas), ou prestar um vestibulinho pro Colégio Industrial, ou o Comercial. Se conseguisse um curso no Senai estava feito! Não lhe faltaria emprego e bom salário.
Sinônimo de êxito na vida profissional era ser bancário. Do Bradesco então, mais chic ainda, com aquela gravatinha de crochê. Diziam na época que no Bradescão não se podia ficar mais de dois anos sem promoção. Corria-se o risco de ser dispensado. Pra quem olhava de fora, ou da fila do caixa no meu caso (boy), isso soava deveras estimulante. Mas lá dentro a pressão era grande...e poucos sabiam que o sistema não era uma pirâmide, e sim um vulcão (queriam que você subisse rápido pra dar lugar e estimular os que vinham debaixo, criando a ilusão de uma rápida ascensão). Mas a carreira era limitada...havia um final na carreira...a partir dali você era queimado, expelido para dar continuidade a roda da fortuna (dos banqueiros).
Nos anos 80 ficou muito famosa a tese, que tinha como seu principal defensor, Ricardo Semler (autor de “Virando a própria mesa.”), de abrir seu próprio negócio. Ser o seu próprio patrão. A diferença em relação aos dias atuais é que naqueles anos, ter o próprio negócio era sinônimo de fazer dinheiro, ficar rico. Hoje é apenas uma alternativa de sobrevivência a quem já se desencanou de arrumar emprego de carteira assinada.
Havia os que profetizavam que o futuro estava na computação. O auxiliar de escritório tinha que se atualizar, aprender Wordstar, Lotus, Dbase...ou se tornar um programador de Cobol, Assembler, Pascal. Eu tentei dar uma investida fazendo um curso para programação de Basic (não serviu pra nada). Tentei então o genérico Operador de computador (uma espécie de peão do programador). Nada. Daí tentei um curso de Digitador (o cargo mais peão da informática): comecei a trabalhar de manhã no Banco Real e a noite fazia bico de digitador (ninguém registrava digitador por causa da tendinite). Daí seguiram-se muitos anos de minha vida em dois turnos de trabalho...sempre temendo a tendinite. Acabei pegando mesmo foi uma sinusite por causa do ar condicionado dos CPDs (centro de processamento de dados). A vida de digitador era boa. Pegávamos o serviço a ser digitado nas prateleiras, digitávamos ouvindo música no walkman, parávamos 10 a cada 50 minutos de trabalho, e colocávamos o serviço digitado em outra prateleira para ser conferido por outros digitadores. Mas..., algum idiota inventou o código de barras. Adeus digitadores...assim como os motoboys substituíram aos office-boys, os computadores aos bancários, os anos 90 aos 80, o bico ao trabalho de carteira assinada.
Mas ainda na fase bancária tive bons momentos trabalhando de manhã no Banco Real e a noite no Unibanco. Dois registros na carteira, dois salários, dois talões de vale-refeição, dois planos de assistências médicas, dois chefes (nada é perfeito). Guardei muito dinheiro, gastei outro tanto, cultivei olheiras, fiz muitos amigos e greves. Essa fase terminou quando eu tive que sair de um dos bancos pra cursar a faculdade de História....e depois, quando saí do outro para assumir como funcionário público. Daqui já não há mais para onde correr. Chega de correr...
A melhor fase?! Foi a de boy, sem dúvida: conhecia toda a cidade, tomava chuva, corria de trombadinha na zona leste, encontrava os amigos na fila do banco, economizava o dinheiro da passagem andando a pé, almoçava cachorro quente na Paulista, via o mundo passando apressado através da janela do busão, e cochilava na longa volta para o bairro da Casa Verde, sonhando um dia me tornar um auxiliar de escritório.

3 comentários:

Lisi Silveira disse...

gostei, bem real ... acho que está no caminho certo. Parabéns, continue ... Lisi

Anônimo disse...

Bom, Gilberto, eu já virei fã dos teus textos... Este ultimo dos TRAMPOS é uma versão masculina de tudo que nós mulheres passamos.Todas da epoca buscaram os famosos "Precisa-se Recepcionista".
Muito bom.

Anônimo disse...

Discordo, o chic era trabalhar no Banco do Brasil. Até hoje tem gente que acredita nisso.
Tinha uma inveja dos meninos que tinham esta opção de ser "boy". Quantas meninas eram office-girl? Ficar na rua, poder ver a realidade lá fora, conhecer a cidade. Mas também na escala hierárquica estava abaixo até do estagiário, e tomava esporro de todo mundo.