segunda-feira, 23 de abril de 2007

O universo num suspiro.


Quando eu era moleque adorava suspiro. Às vezes tenho a impressão de que deixei de ser criança no exato momento em que o doce perdeu a importância pra mim. Ah! Como era doce a infância!
Eu ficava cheio de esperanças quando o caminhão Ford verde escuro, com o logotipo da marca Neuza, parava na frente do boteco perto de casa. Sabia que as prateleiras estariam sendo abastecidas de novas guloseimas. Gibis de amendoim, doce de leite, cocadas, suspiros, maria-mole, pipocas de canjica (naquele inconfundível saco rosa), paçoquinha... todas as delícias do mundo que trinta centavos poderiam comprar.
Se eu quisesse um doce mais sofisticado, teria que me aventurar por dois quarteirões e meio, enfrentando cachorros de rua de humores instáveis e os temíveis moleques da rua de cima. A quitanda do Seu Joaquim ficava longe para minhas pernas de 8 anos. Mas valia a pena: chocolate em forma de peixe, garrafinhas de chocolate com licor, simulacro de sorvete feito com casquinha cônica comestível recheada de maria-mole com açúcar granulado e um brinquedinho espetado na ponta. Havia também doces mais caros, como os chocolates Prestígio e Choquito, os cigarrinhos de chocolate da Pan... mas eu raramente tinha dinheiro para comprá-los. E quando o fazia, ia lambendo e chupando o doce para ele não acabar rápido, afinal, custavam o equivalente a três doces normais. De qualquer forma já valia a “viagem” chegar perto daquele gabinete de madeira, sentir a mistura dos cheiros açucarados, descobrir novidades e desejos.
No meu bairro os ambulantes também faziam sucesso. Quando ouvíamos o som da buzina, interrompíamos o que quer que estivéssemos fazendo (futebol, jogo de taco, mãe-da-rua), aguardando estáticos o surgimento do ambulante quebrando a esquina. Algodão-doce, maçã-do- amor, quebra-queixo e os deliciosos sorvetes da Crenata. Eu adorava o sorvete Esquimo (recheio de nata com cobertura de uma fina casquinha de chocolate vagabundo). Surgiam os ambulantes, enfim, e aos sons das buzinadas se juntava o alvoroço da molecada, entrando em suas casas, extorquindo as mães através de súplicas ou birras. Pena que nem sempre suas aparições coincidiam com o dia do pagamento dos pais. Era frustrante vê-los surgir numa extremidade da rua, sentir as provocações das buzinadas, observando-os seguirem em seu passo demorado e exibicionista, até ganharem a outra esquina, desaparecendo como uma miragem... sem que nossos olhares mais suplicantes ou nossos choros mais convincentes arrancassem da mãe os vinténs que ela guardava pra coisas menos importantes (couve, salada, arroz, feijão).
Já nos tempos de escola descobrimos novos sabores: as paçoquinhas que vinham socadinhas em cones de papel, potinhos comestíveis de doce de banana (aquele com pazinha de madeira), sucos gelados ou congelados em saquinhos plásticos, os isopores maravilhosos e seus picolés sortidos de coco queimado, abacate, groselha... A rua do portão de entrada do Colégio de Primeiro Grau Dona Angelina Maffei Vita (não resisti a escrever o nome inteiro tal e qual aos milhares de cabeçalhos que nos obrigavam iniciar cada disciplina!) era um verdadeiro carnaval dos pecados. Eu era freguês de um sorveteiro que oferecia como diferencial a oportunidade de se ganhar outro picolé, se conseguíssemos retirar uma bolinha branca de dentro de um saco de pano cheio de bolas de gude. Até o fim da oitava série não conheci ninguém que tivesse conseguido!
Na fase Office-boy sobrava algum dinheiro para um sorvete da Kibon ou da Gelatto. Eu era daqueles que, findo o sorvete, ficava mastigando/chupando os palitos por horas. Uma vez, descobri tardiamente que havia mastigado um palito premiado... perdi um sorvete extra! Que droga! Só fui perder o hábito de mastigar palitos quando a Kibon lançou a promoção na qual você trocava uma certa quantidade de palitos marcados por figurinhas do álbum do filme Flash Gordon (a versão de 1980). Aproveitava minhas andanças de boy pra coletar palitos perdidos pelas ruas de São Paulo. Resisti bravamente para não mastigá-los. Por fim, preenchi totalmente o álbum... mas até hoje não assisti ao filme.
Ah!...Nossa doce infância!!! Se eu pudesse dar um conselho a meu querido leitor... pediria a ele que num dia ensolarado qualquer, adquirisse um doce, desses que um dia adocicaram a sua meninice (um suspiro, por exemplo), procurasse um banco de praça ou a sombra de uma árvore, e se dedicasse única e exclusivamente a comer esse suspiro. Apenas coma-o, pois é assim que as crianças fazem... No minuto em que durar a degustação, se esqueça do mundo, ignore o temor das calorias, esqueça o tempo do relógio. Apenas coma o suspiro. Não pense em nada. Se memórias lhe assaltarem a mente, deixe-as fluir, pois memórias são pensamentos já pensados. Apenas coma o suspiro. Use seu olfato para extrair-lhe o doce aroma... use os olhos apenas para descobrir nele os cantos mais saborosos. Apenas coma o suspiro. Não se importe com as migalhas que poderão lhe cair sobre a camisa nova. Apenas coma o suspiro... Aaah...! Quem sabe, num suspiro, você encontra uma criança perdida?!

7 comentários:

Antonio Guilherme disse...

É Giba...
Uma coisa admirável é sua facilidade de falar de forma simples coisas lá da nossa infância. Coisas pequenas mas que foram muito importantes, pois marcaram.
Já pensou em escrever para algum jornal ou algum livro?

Unknown disse...

Demorou p/ escrever um livro, ou p/ pelo menos a pensar nele com bastante seriedade. Mais uma vez amei a cronica , mas vou te contar uma de dar inveja: EU JÁ TIREI A BOLINHA BRANCA e ganhei o sorvete!!!!
Gil, tá doce o texto, literalmente .

Anônimo disse...

Meu saudoso amigo Giba,

Quanta nostalgia ! Suas palavras com poder de tunel do tempo me arrepiam... Esse tal dom faz meus olhos se renderem a modestas lagrimas de saudades da minha infancia, grande parte da minha historia que deixei ai nessa terra tao querida. Lendo sua cronica, voltei facilmente aos meus 6 aninhos quando ia visitar minha avo materna que morava no Ipiranga. As tardes eram sempre a grande atracao do dia, andava nas minhas Havaianinhas, com minha tia e primos ate a vendinha que ficava a alguns quarteiroes para comprar as pacoquinhas "amor" que vinham embrulhadinhas num quadradinho ou o doce "skate" de morango... Mas tudo mencionado em sua cronica me trouxe 1979 com muita emocao.
Parabens pela facilidade com a qual brinca com as palavras e o mais importante, pelo seu efeito.
Um beijao e saudades !

Anônimo disse...

Bicho...escuta essa! Certa vez, lá pelos idos de 1982, um caminhão de Doces Neuza (aquele verde escuro) quebrou bem na nossa rua. Pronto.... juntou uma molecada enorme, todos na esperança de que sobrasse qualquer coisa caso o motorista decidisse abandonar o carro por lá. Puro delírio, claro. Não faltaram propostas de empurrar a tal jeringonça em troca de alguns doces... O motorista, bem bonachão, só fazia dar risada e tirar sarro de nossa cara!

Unknown disse...

Oi Gilberto, primeiro meus parabéns pelas lindas crônicas. Vc escreve muito bem, endosso os conselhos dos outros comentários, vc pode ir longe com essas histórias. Bem, me emocionei demais, tem td a ver com o que se passa no meu coração, a saudade enorme da infância. Acho que fomos privilegiados por termos vivido aquilo tudo e ainda preservarmos essas lembranças capazes de nos sensibilizar tanto. Converso com gente mais nova e muitos deles nem entendem o que é ter saudade da infância, aliás raramente lembram o que aconteceu nela. É estranho mas fico feliz, por que nós temos essa maravilha em nossos corações. Parabéns novamente! Adorei!

Anônimo disse...

Me dei conta que, apesar de ser uma comedora de doces compulsiva até hoje e ter tido um avô dono de bar que me entupia todo domingo com as mais variadas e deliciosas tranqueiras, nunca alcancei este seu nirvana infantil com os doces. Você fazia isso com uma devoção incrível. Quem melhor pode nos relembrar destas coisas do que você?

Lembre-se desta crônica antes de fazer patrulhamento alimentar no Inácio, hein? Escovando bem os dentinhos no hay problema...

Unknown disse...

Giba!!!! Vc é sensasional!!! A maneira como descreve as coisas simples da nossa infância faz com que tudo se torne poesia! E como isso traz saudades! Vejo que nós do interior não somos tão diferentes do "pessoar da capitar" rss... Vc deveria escrever um livro!!! Parabéns!! Luciane