sexta-feira, 6 de julho de 2007

Homem não chora.

Sábado de inverno de 1989, onze e meia da noite, Lika se despede de todos, saindo do boteco:
- Tchau Conrado. Tchau Zoly. Tchau Betinho. Tchau Piru.
Respondemos todos quase em coro, a exceção do Piru que disse um “tchau” mais atrasado e abafado. O desabafo veio quinze minutos depois, quando estávamos só eu e ele sentados na calçada:
- Cê sabe que eu tava ficando com a Lika, né?
Respondi afirmativamente.
- Pô, cara, é barra! Eu tava gostando dela pra caramba. Não entendo o porquê das coisas terminarem assim...
Percebendo que ele precisava falar, apenas contemporizei:
- É complicado...
- Sabe, Beto, aquela musica do Kid Abelha que diz assim: “o nosso amor se transformou em bom dia”?! - cantarolou timidamente o pedaço da letra.
- Sei, sei.- respondi, percebendo que pelo nível da citação a coisa era grave.
- Pois é... vendo ela sair assim, se despedindo geral... me lembrei dessa música.
...

O Piru era um cara boa pinta, do tipo fortinho, cabelos compridos de roqueiro. Não era de namorar muito tempo, preferia galinhar, valendo-se inclusive da força de seu sobrenome (Casanova). Nunca poderia imaginá-lo fisgado pela armadilha da paixão. E seria cômico se não fosse trágico. Nós, roqueiros de 18 a 22 anos, que já havíamos enfrentado de tudo: punks, carecas do subúrbio, polícia, trombadinhas... nunca estivemos preparados para a paixão. Nem havia músicas em nosso repertório para isso. Eu, que até então achava que era o único da turma que sofria com paixões platônicas e difíceis, recorria a High and Low do Aha, Girl I´m gonna miss you do Milli Vanilli, e mais algumas outras que o tempo e a vergonha (para a biografia de um roqueiro) me fizeram esquecer.

Diferentemente do que acontecia com as meninas, entre garotos não era comum conversas sobre sentimentos. Ocorriam curtos e genéricos relatos sobre amassos e sexo... mas paixão não. Enquanto as garotas tinham as revistas (Capricho, Nova, etc), os livros de auto-ajuda emocional, e as amigas para auxiliarem sua educação sentimental, nós, pobres moleques, só podíamos contar com a solidão escura do quarto para revelarmos, em lágrimas esparsas, aquela tão incômoda sensação de aperto no coração. E o pior de tudo, cada qual achando que era o único bobão da turma que chorava escondido.

Homem não chora”. Não conheço a autoria da frase que criou um dos maiores e mais nefastos tabus da adolescência e juventude de nossa geração, cujas conseqüências se fazem presentes ainda hoje. Esse tabu tornou o choro proibitivo aos rapazes desde os 15 anos de idade, pois era considerado sinal de covardia. Tornou também a paixão um sentimento inconfessável, pois esta era entendida como sinal de fragilidade. Não obstante todos os garotos se apaixonavam (perdida e discretamente) e choravam (freqüente e veladamente).

Para além de transformações anatômicas ou hormonais, o grande batismo da adolescência masculina é a eclosão da primeira lágrima de paixão. E as protagonistas desta são, invariavelmente, a colega mais bonita da escola, a menina da esquina, a prima, a irmã do melhor amigo, a namorada do ex-melhor amigo. Paixões tão inconfessáveis quanto as conseqüentes lágrimas, e o afrouxamento qualitativo do gosto musical. E o tempo passa, secam-se as lágrimas, esquecem-se as músicas, substituem-se as paixões, acumulam-se as cicatrizes.

Em parte pelo tabu, em parte pelo desconforto de lidar com sentimentos inebriantes, desde as primeiras cicatrizes sentimentais, os garotos aprendem a fugir das paixões. Ou pelo menos tentam. Disso provavelmente resulta a evidente falta de maturidade emocional que assola a maioria dos homens quando comparada às mulheres da mesma idade. As garotas não fugiam das paixões... ao contrário, viciavam-se nelas. Sofriam, conversavam-se entre si, elaboravam planos e sonhos, frustravam-se, consolavam-se, choravam a luz do dia... enfim, tinham a oportunidade de vivenciar os sentimentos em sua plenitude. E com isso amadureciam. Já os pobres moleques preferiam a volubilidade estratégica. Evitavam falar em compromisso, namoro, sentimentos. Beijavam, transavam, e fugiam ao primeiro sinal de aperto no coração, buscando uma nova conquista, e perdendo a maior de todas, a conquista do auto-conhecimento emocional. Creio que isso explica em parte uma certa dificuldade que temos, nós garotos crescidos, de estabelecer vínculos mais duradouros.

Não obstante, as paixões acabavam acontecendo por acidente, até porque não inventaram preservativos para o coração. Digo “acidente” porque a intenção dos guris era, a principio, tentar deixar as garotas apaixonadas. Isso favorecia o currículo do moleque em relação aos seus pares e às demais gurias. Em caso de “acidente” tentava-se não demonstrar, o que era inútil, pois os amigos percebiam facilmente o olhar ora abobalhado, ora preocupado, ora vigilante da “vítima”. E se já não fossem deveras desconfortáveis os sintomas da paixão, ainda surgiam as chacotas da turma. Com o avançar dos anos, as chacotas iam sendo substituídas pelo sentimento de piedade, o que também não deixava de ser um tanto desconfortável. Por isso, somente nos casos mais agudos é que as confissões ultrapassavam os limites das paredes do quarto.
...

Sete copos de cerveja depois, eu já estava quase me solidarizando ao Piru em suas confissões, contando sobre minha sofrida paixão pela Marley... mas não contei. Esse segredo o Piru só virá a saber quando ler essa crônica, dezoito anos depois.
Garotos, pobres garotos!