quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Discípulos do Vento

A infância na periferia de São Paulo naquele meado da década de 70 exigia muita imaginação da molecada. Praticávamos a reciclagem de materiais (tão cultuada e necessária nos dias atuais) sem o saber. Assim, pneus velhos eram rodados pelas ruas como se fossem carros, vassouras descabeladas viravam cavalos ou espadas, meias rasgadas eram entrelaçadas formando bolas, latinhas vazias de extrato de tomate e cordões rascunhavam os celulares do presente, folhas de papel rasgavam os céus do Bairro e as correntezas dos esgotos, na forma de aviões e barquinhos. O descarte dos adultos era ouro nas mãos e mentes engenhosas da molecada.

Meus cadernos dos anos escolares anteriores eram o hangar de onde decolavam maravilhosos planadores. Eu e meu amigo Mitsu passávamos tardes inteiras arremessando os projéteis de celulose por sobre telhados e terrenos baldios. Não se tratavam de aviõezinhos genéricos. Eram planadores feitos na mais perfeita tecnologia origâmica japonesa. Eu tinha um prazer especial em arrancar as folhas do caderno de Física. Nunca gostei da disciplina...pelo menos da maneira como era ensinada naqueles anos cartesianos. Havia muitas leis, muito cálculo, muita fórmula, muitas limitações. As aulas de Física causavam na molecada uma espécie de desencantamento do mundo. Superhomem, Ultraseven, Superdinamo, nenhum herói voaria mais depois daquelas aulas do professor Antonio. E o pior é que ele parecia ter um certo prazer em apagar o brilho quântico e inocente dos nossos olhos: “Isso não existe.”, “Isso é impossível.”, “Isso só acontece na televisão.” Talvez por isso minha geração tenha formado mais engenheiros que heróis. Eu mesmo, já há algum tempo, havia me aposentado, devolvendo minha capa de voar à gaveta das toalhas.

Minha vingança vinha na forma aerodinâmica dos aviõezinhos das folhas do caderno de Física. Fazia-os com mais vontade, arremessava-os com mais força, admirava suas trajetórias triunfantes, até que a Lei da Gravidade do professor Antonio os obrigassem a retornar ao solo. Mas eu não desistia... procurava sempre algum buraco na Lei.

Naquela quinta feira nublada e ventosa, por volta das três da tarde, o micro tráfego aéreo da Vila Célia estava intenso. Do Aeroporto Internacional da Calçada da Rua da Casa do Mistu decolavam planadores a cada meio minuto. Finalmente eu iria transformar a última folha do caderno de desencanto numa aeronave derradeira. Caprichei na simetria da dobradura da folha, calculei a direção do vento, articulei a musculatura do braço lançador, e arremessei com força. Subiu como um foguete, atingindo o limite da trajetória ascendente numa altura impressionante, e começou a planar lentamente. Houve um momento em que o avião parecia estar parado. Ficamos os dois na calçada, observando admirados a altura e a estabilidade do vôo, até que uma súbita abertura nas nuvens despejou um feixe de luminosidade solar, ofuscando nossa visão. O fenômeno teria durado uns poucos segundos, mas quando retornamos nossos olhares para o céu, não encontramos mais o aviãozinho. Estranhamos o desaparecimento pois a altura em que se encontrava permitiria mais uns 10 segundos de vôo até atingir o chão. Começamos então a procurá-lo por entre o mato baixo do terreno baldio e nos quintais das casas vizinhas. Nada encontrando, resolvemos subir o morro adjacente ao terreno baldio até atingir a rua alta. De lá podíamos observar os telhados das casas onde o planador poderia ter feito um pouso forçado. Nada. O avião parecia ter sumido no ar!

Cansados da busca sentamos na calçada, compartilhando a mistura inusitada de pensamentos-sentimenos (surpresa, excitação, frustração). O que teria acontecido? Logo surgiram as primeiras teorias: ramal de um buraco negro, fenda espaço-temporal, túnel do tempo... Enfim, nada que o professor Antonio aprovasse. Passamos o resto da tarde ali na calçada, alternando a elaboração de teorias com alguma busca tardia e infrutífera pelo quarteirão. O avião realmente desaparecera.

Às vezes tenho a sensação que aquele avião tinha como passageiro a minha mente, pois fiquei com a cabeça nas nuvens. Passei a adorar o vento e os dias nublados. E não raramente me pego observando, introspectivo, o céu e seus tufos de algodão. Sei que não sou o único que age assim. Muitas pessoas têm esse hábito, porém impulsionados por motivos bem diferentes. Uns olham o horizonte à procura de meteoros e cometas. Outros anseiam (ou temem) a aparição de discos voadores. Muitos dirigem seus olhares para o firmamento ansiando (ou temendo) a (re) aparição do Arauto Divino por entre as nuvens, anunciando o final dos tempos e fazendo um recall do povo Dele. Minha motivação é mais singela, porém autêntica. Olho os céus à procura do meu avião de papel.

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Meu filho Inácio de 11 meses já engatinha por toda a casa e tem uma atração especial pela cozinha, o que nos obrigou a instalar uma porta-grade para impedí-lo de se aventurar por aquele mundo cheio de perigos e mistérios. Dias destes eu resolvi deixar a portinhola aberta e verificar o comportamento do infante. Engatinhou rápida e certeiramente até o armário da pia. Escalou os puxadores, conseguindo ficar em pé. Vagarosamente (pela limitação de seu equilíbrio e não por sua ansiedade) puxou a terceira gaveta retirando uma toalha. Nessa altura já se mantinha apoiado somente com uma das mãos segurando o puxador num esforço hercúleo, enquanto voltava o olhar entusiasmado para o pai-babão. E finalmente num ato heróico largou o puxador e tentou empreender aquele que seria o primeiro passo do resto de sua vida, vindo em minha direção. Rapidamente amparei-o, já quando seu corpo se precipitava na queda. Sentamos os dois no chão da cozinha, e depois de um sorriso de dente de leite, ele me ofereceu a toalha. Naquele momento um vento repentino oriundo da área de serviço passou a soprar no recinto. Inácio fechou os olhos sem apagar o sorriso, parecendo estar saboreando a delícia de uma carícia invisível. Não tive dúvida... vesti novamente a minha capa, e saímos os dois, voando pela sala.

Naquele dia, para azar do mercado e sorte do Planeta, o futuro perdia mais um engenheiro.