sexta-feira, 3 de agosto de 2007

O Mago dos Bonecos.


Duvido que haja alguma pessoa que, tendo freqüentado a noite paulistana em seus pontos mais tradicionais (Bixiga, Vila Madalena, região da Paulista), não tenha visto ou até mesmo comprado um dos bonecos daquele senhor barbudinho, de fala mansa, sorriso fraterno e aparência nórdica. O Senhor dos Bonecos se tornou uma espécie de lenda urbana.


Tive o prazer de conhecer pessoalmente o Seu Armando. Era pai de dois dos guris da turma do bairro. Na época, começo dos anos 80, ele circulava numa mobilete ruidosa pelos quatro cantos da Casa Verde. Ganhou o apelido jocoso da molecada de Frango da Sadia devido ao capacete branco antigo, com uma enorme viseira amarelada. Quando estava a paisana, recebia o honroso apelido de Bill Ward, baterista barbudo do Black Sabbath. Não me recordo muito bem das conversas que às vezes tínhamos com ele, mas ainda lembro que, apesar do tom e velocidade de voz demasiadamente cansativos para nós adolescentes, ouvíamos atentamente suas histórias. Era o próprio Flautista de Hamelin nos hipnotizando com a melodia de suas idéias heterodoxas sobre a política, o capitalismo e o futuro. Os ratos? Estavam no governo, diferentemente dos tempos atuais, nos quais eles se camuflam de presidentes de grandes corporações.


Creio que já nessa época produzia artesanalmente os bonequinhos de pano que vendia pela cidade. Era mais um artesão que comerciante. E o artesanato era antes um ato de resistência que uma alternativa aos empregos formais que ainda não rareavam no inicio dessa década. Com o derradeiro silenciar da mobilete passou utilizar bicicleta. Pedalava alguns quilômetros até as regiões de barzinhos que mantinham mesinhas pelas calçadas. Seguia de mesa em mesa, oferecendo os bonecos da maneira menos invasiva possível, puxando uma conversa amiga, patrocinada pelo sorriso bonachão e pela voz branda e calma. Com o tempo passou a ser conhecido e reconhecido pelos freqüentadores da noite paulistana. Não raramente era convidado a sentar à mesa, onde sua articulação filosófica ganhava a atenção dos ouvintes. Era interessante ver rapazes de gravatas afrouxadas em happy hour (funcionários dos grandes ratos), punks, hippies tardios, pretensos intelectuais, enfim, a mais variada fauna social, deixando a cerveja esquentar no copo para ouvir o Sábio dos Bonecos.


Tive um reencontro histórico com Rei dos Bonecos no ano de 1996. Nessa época cursava a faculdade de História. Adorava passar tardes inteiras perdido nos imensos corredores de estantes da biblioteca. Encontrando algum livro interessante, lia-o ali mesmo sentado no chão. Foi numa dessas tardes que encontrei uma interessante compilação de fabilaux (espécie de crônica medieval originada da tradição oral que retratava a vida cotidiana urbana da época). Os vários textos transcritos estavam versados simultaneamente em francês, inglês e espanhol, seguidos de notas dos historiadores Charles Lenglois e Jacques Castenau. Passei rapidamente os olhos pelas narrativas e escolhi para ler uma que se chamava As Três Damas de Paris (datada do século XIV e atribuída a um trovador de nome Watriquet de Couvin). Três conhecidas e comportadas mulheres entram numa taverna e começam a beber até perderem a compostura. Eis que surge um artesão de bonecos de palha (!) tentando convencê-las a encerrar a bebericagem. Sendo a princípio ridicularizado pelas senhoras, vai conseguindo aos poucos, com sua voz calma e seus argumentos demovê-las do ato vergonhoso. Nas notas, com o argumento de que não se deve acreditar cegamente nas informações dos cronistas, Lenglois critica os intelectuais franceses que atribuíram à figura inusitada do artesão de bonecos um provável dissidente das revoltas camponesas causadas pelo aumento da exploração dos senhores feudais sobre a diminuta população dos servos sobreviventes da Peste Negra. Baita viagem! Pra mim era o Armandão.


No começo de julho deste ano de 2007 recebi a triste notícia da morte do Seu Armando. E pesquisando na internet encontrei algumas informações curiosas sobre a pessoa dele. O Mestre dos Bonecos era formado em Engenharia Naval e teria sido professor na Universidade de São Paulo, ofício que abandonou durante o regime militar. Na verdade, melhor seria dizer que abandonara o cargo e não o ofício, já que muito aprendemos com ele. Na verdade, melhor seria dizer que não morreu, apenas devolveu o corpo de que se servira, já que as lendas não morrem, se ratificam. Em verdade, melhor seria dizer que ele não oferecia bonecos aos clientes ruidosos dos barzinhos... Era exatamente o contrário... Os bonecos é que ofereciam o Artesão/Professor/Flautista.


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Daqui a muitos anos, quando meu filho tiver capacidade de ler e entender esta crônica, me perguntará se o Homem dos Bonecos realmente existiu e se eu realmente o conhecera. Serei sincero e responderei afirmativamente, mas o advertirei de que não se deve acreditar cegamente nas palavras de um cronista.