sexta-feira, 27 de abril de 2007

As paixões da oitava série.

Os anos no primário terminavam, e eu não perdia as esperanças de que na lista de material do ano seguinte, fossem incluídos alguns dos sonhos de consumo de nossa infância escolar. Com as canetinhas Silvapen eu já não sonhava mais. Só eram desejadas até a quarta série...depois disso perdiam a graça, pelo menos pra nós, moleques. De giz de cera eu nunca gostei... aquele traço grosso deixava meus desenhos ainda mais feios. O apontador de ferro era eterno, não quebrava nunca, ou pelo menos durava até a oitava série... mas nem com esses argumentos eu conseguia convencer a mãe a comprar... tinha que me contentar com o verdinho redondo. Uma vez, acidentalmente, o verdinho caiu da mesinha e foi rolando até perto da mesa da professora, durante um ditado: perdi cinco palavras só para ir busca-lo. As réguas geométricas eram outro item de adoração. Nas aulas de educação artística eram essenciais para desenhar bichos, e nas de geografia serviam pra gente contornar o (antes indesenhável) mapa do Brasil.
Eu adorava também o dia em que chegavam os livros didáticos. Era maravilhoso ver a professora chegando com aquelas caixas abarrotadas. A primeira coisa que eu fazia quando recebia os meus era cheira-los. Adorava (e ainda adoro) o cheiro de livro novo. Um dia desses, estava numa grande livraria de shopping, aproveitei que não havia ninguém por perto e dei uma bela cheirada num Fritjof Capra. O chato dos livros didáticos é que conforme se seguiam as séries, menos figuras eles possuíam. Os de Matemática já eram chatos desde a quinta: só figuras de conjuntos, triângulos, cubos e retas. Eu odiava as retas. Os de História iam ficando mais grossos, letras menores, e as figuras iam perdendo a cor. Os de Geografia e Português começavam a se dividir em livros-textos e os odiávieis e intermináveis cadernos de exercícios (geralmente feitos de papel amarelado com um cheiro ruim).
O maior sonho de toda a nossa infância escolar era a caixa de lápis de cor Faber Castell de trinta e seis cores. Conhecia-se o padrão de vida de um coleguinha pelo tamanho da caixa de lápis de cor que os pais lhe comprava. As de seis cores eram comuns nas séries iniciais. As de doze já causavam alguma inveja a partir da quarta série. A partir da quinta até a sétima já surgiam alguns afortunados com os maravilhosos estojos com vinte e quatro cores. Finalmente, na oitava série se escancarava de vez a luta de classes: uma minoria privilegiada com trinta e seis, a grande maioria com o estojo de vinte e quatro, e eu, com meu valente estojinho semi-novo de onze cores (eu havia perdido o azul celeste), que com alguma economia, sobrevivera à sétima série. O lápis vermelho era o mais gasto, estava pela metade. Os outros ainda possuíam dois terços do tamanho original. E o branco... intacto. Aliás, desde que a primeira caixinha veio parar em minhas mãos, eu me perguntava: Por que o senhor Faber Castell (eu o imaginava como um velhinho barrigudo, bonachão, de terno e colete, óculos redondinhos, bigode farto e branco, cartola e bengala), insistia em colocar nas caixinhas, o inexpressivo (e até então inútil) lápis branco. Nunca se usava.
Mas o lápis branco e o azul celeste (que perdi) tiveram um papel importantíssimo na minha oitava série. Os céus do meu caderno de desenho nunca ficaram desamparados graças a Miriam de Fátima (36 cores), a colega da mesinha da frente que passou a me emprestar o lápis azul celeste e os sorrisos brancos. Miriam era um ano mais velha que eu, mais madura, alta, não muito magra, pele alvíssima e cabelos compridos levemente avermelhados. Não morava no bairro, pois pegava ônibus pra ir embora. Só não era a menina mais bonita da sala por causa do nariz grandinho... mas era a menina mais bonita dos meus olhos. Entre empréstimos de lápis e devoluções de borracha (embora ela possuísse uma, gostava de usar a minha), ficamos muito amigos. Vivia me roubando o caderno para copiar as repostas dos questionários de Geografia e História, devolvendo depois devidamente assinado com seu primeiro nome num dos cantos das folhas. Depois de um tempo comecei a ter a impressão de que o “M” da assinatura dela passara a ser traçado com as perninhas mais fechadas, formando um coraçãozinho... Bendito lápis azul-celeste!
No mês de julho daquele ano aconteceu algo estranho. Pela primeira vez me sentia desconfortável com as férias... Futebol de rua, pega-pega, peão, empinar papagaio... nenhum folguedo parecia dar-me a satisfação de antes. Foi então que numa noite, ouvindo o rádio do pai, eu senti um aperto no coração, uma dorzinha, um desconforto melancólico. Tocava a música Flor do Campo na voz do Fabio Junior... Não sabia nomear aquele sentimento... mas ele durou as férias inteiras... e se fazia piorar toda vez que eu ouvia a música.
Recomeçaram as aulas, os empréstimos e as assinaturas. Embora tivesse havido algum progresso na intimidade com a Miriam (já não era raro compartilharmos doces na hora do recreio), a preocupação com o final do ano passava a angustiar-me. Minha escola era apenas de primeiro grau. Iríamos para escolas diferentes. Talvez nunca voltássemos a nos falar, já que ela iria para um colégio em seu prórpio bairro. E eu temia perpetuar para o resto da minha vida aquela sensação desconfortável que surgira nas férias, ainda que conseguisse calar a boca do Fabio Junior. Numa atitude de desespero, passei a sentar junto com a turma do fundão... mas ela me arrastou com mesa, cadeira e tudo pra perto dela. Maldito lápis azul-celeste!
Chegou novembro e aquela sensação estranha não passava. E o maldito Fabio Junior continuava estourando nas paradas. Foi então que numa atitude impulsiva passei a desenhar um coração envolvendo cada assinatura que ela deixava em meu caderno. Ela continuava assinando. Mas a cada coração que fazia, me sentia melhor. Então resolvi ousar ainda mais: comecei a escrever “eu te amo” nos cantos das folhas onde ela ainda não havia assinado. E ela continuava a assinar. E eu ia me sentindo melhor a cada folha. Foi então que resolvi dar o golpe final no restinho de melancolia que ainda sentia, já na última semana de aula: Desenhei um grande coração na última folha do caderno, e dentro dele escrevi todos os meus sentimentos. Foi uma ação libertadora. Sentia-me leve, não carregaria mais o fardo dos sentimentos inconfessáveis. No último dia de aula Miriam me pediu o caderno e escreveu um pequeno versinho na última folha... e assinou. A oitava série terminou, e nós nunca mais voltamos a nos ver. Ainda guardo dela uma pequena, doce e eterna saudade. Foi uma verdadeira terapia eu ter aprendido a expressar meus sentimentos através da escrita. Bendito, bendito lápis branco!!

7 comentários:

Anônimo disse...

Ô Gilberto... cê tá de brincadeira! Muito bom esse texto! Tem é que juntar umas duas dezenas de textos e batalhar um editor! O mais dificil você já tem.... talento!

Anônimo disse...

Caraca Messias, que verve! Este texto está um desbunde.
Inda bem você inventou esta onda de ser blogueiro, hein?!

Anônimo disse...

Digo com todas as palavras, voce está de parabéns, a tempos tento encontrar amigos da nossa epoca que estudaram em escola publica como nós e com o tempo amadureceram e conseguiram colocar o seu sentimento em palavras.
O seu texto trouxe recordações e emoções guardadas, isso mostra que voce tem talento, espontaniedade e criatividade.
um abraço do baixinho.

Rosália Winck de Barcelos disse...

Querido tio e ídolo: amo tudo o que escreves, mas esta crônica é a minha preferida (por enquanto, né?). Repentinamente, me deu uma enorme vontade de adquirir um lápis branco... acho que ele pode ser a salvação para os meus problemas...

Unknown disse...

Bom, faço minhas as palavras do Marcão. Demorou ,um livro.....
Como sempre nos remete à um passado tão recente e tão cheio de saudades.....Tá lindo.Gil ,sou tua fã!!!!
Abração

Vivizilla disse...

Vou te contar um segredo: Guardo até hoje a minha preciosa caixa de lapis de 36 cores! E ainda uso! esses dias, me peguei pintando um mapa com eles... isso mesmo! Mapa em papel, pintado com lapis de cor! Me perguntaram porque não fazia tudo no computador? Resposta: Assim é mais fácil de entender!
Adorei o blog! Vou adicionar na lista dos meus! beijos

Aline disse...

Sinceramente, venho procurando um texto bom na internet há dias e não encontro, após ler o seu estou deslumbrante de felicidade...
A sacada do lápis branco foi demais!
Parabéns!!!